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sexta-feira, 21 de julho de 2017

Rosa bebê

Umas dúzias de carências e desejos de alma me andavam esquecidos. A psicanálise me ensinou que a vida é frustração constante e meu trabalho psicológico seguia sendo o de tentar aceitá-la e suportá-la. Então eu não gastava muito tempo pensando sobre o que eu queria, mas sim tentando lidar com a ideia de não ter. Pensando nas mais diversas estratégias de nado na angústia.

Tudo que era feliz ou satisfatório demais eu fitava com olhos de pena, de quem vê o otimismo e seus adjacentes como tolice, como um ato compulsivo e inconsciente de pessoas fingindo que não lhes existia a falta.

É, eu não estava bem... Estava em plena desesperança, mergulhada na crueza da vida. Eu era contraditória também. Pensando a existência como manifestação da angústia ao mesmo tempo em que crescia meu interesse sobre evolução espiritual e filosofias de vida focadas no auto aperfeiçoamento. Com a convicção de que eu jamais poderia ser verdadeiramente conhecida mas me esforçando em me fragmentar em textos e até nos pequenos enfeites que espalhei pelo meu quarto (coisas visíveis). De alguma forma eu queria ter esperança e propósito.

Quando, recentemente, eu vi a felicidade genuína diante dos meus olhos, meu corpo estremeceu. Os meus anseios não admitidos me saltaram aos olhos. Os vi realizados em diversos vislumbres e fui vendo como aquilo assustadoramente se encaixava comigo e dava um calor imenso ao meu coração. E pela primeira vez deixei minha alma contar as coisas que ela mais deseja e hoje tenho condições de dizer a frase "eu quero" com uma inédita convicção.

Eu me tornei de certa forma tão enrijecida que é preciso esforço para viver dentro desses vislumbres. Percebi o quanto a angústia é segura (e covarde), o quanto ela reside no conforto de não querer ter nada só para não correr o risco de perder. Mas eu resolvi me dar esse presente. Que a vida não vai me trazer uma felicidade plena e perfeita eu tô cansada de saber. Mas os momentos de alegria e sonhos serão bem vindos e buscados.

Amatomia

olho luneta multifocal
mãos clima tropical
garganta instrumento musical
pé mais desconfiado que Tomé
coração galope distante do pangaré
estômago máquina movida a café
braço gancho de barco a vela
pernas brilho ondulado de tela
quadril diamante lapidado
costas caminho camursado
língua pra ensinar à maciez uma lição
mamilo sonhada amamentação
orelhas depósito de cravo
testa de aparentar humor bravo
queixo curvinha da qual se queixa
sob ele, encaixe pra minha cabeça
ombros pra dar de ombros na birra
na nuca fios se dispondo feito uma lira
pulso varanda da alma
coxas pra me findar toda calma
pescoço proporção áurea
seios delicada área
boca lânguido arrebol
cílio pedidos ao pôr do sol
cabelo cetim de cobrir
umbigo de soprar pra rir
dedos pra não me deixar ir.